Pelo menos 242 mil famílias brasileiras
(cerca de 960 mil pessoas) ainda não têm energia elétrica em casa.
Percorremos 1.300 quilômetros no sertão do Ceará para contar a rotina
sofrida de algumas pessoas que não vão assistir à Copa do Mundo
242 mil famílias do país ainda não contam com energia elétrica em casa (Foto: Rafael Luis Azevedo)
Rafael Luis Azevedo, da Agência Pública.
Fortunato da Silva parece viver em outro planeta. Quando vê a camisa da seleção brasileira,
mostra-se indiferente. Para ele, é um “pano qualquer”. O
desconhecimento sobre o manto mais famoso do futebol mundial
justifica-se. O agricultor nunca teve energia elétrica em casa. Sem
opção, mantém distância de tudo o que cerca a Copa do Mundo, o maior
evento da Terra, prestes a ocorrer a 450 quilômetros dali, em Fortaleza.
A
rotina de Fortunato, que vive em Serra da Estrela, comunidade
localizada no município de Saboeiro, no sertão do Ceará, assemelha-se à
de pelo menos 242 mil famílias brasileiras sem acesso à
eletricidade (correspondentes a 960 mil pessoas, segundo o Ministério
de Minas e Energia). Essa parcela da população, espalhada pelo país,
dificilmente participará da Copa do Mundo mais cara da história, com
custo oficial previsto em R$ 25,7 bilhões, segundo o Portal da
Transparência.
Fortunato
da Silva parece viver em outro planeta. Quando vê a camisa da seleção
brasileira, mostra-se indiferente. Para ele, é um “pano qualquer”.
Entrar em estádios será privilégio de poucos. Mas, para Fortunato e seus vizinhos, nem mesmo ver os jogos pela TV será
possível. Dentre os 184 municípios do Ceará, Saboeiro é o que tem maior
proporção de habitantes sem energia elétrica. Ao todo, 8,9% dos
moradores da região não sabem o que é isso. É um índice alto, levando-se
em conta que 1% da população do estado não possui o serviço.
Prazeres
simples, como beber água gelada ou refrescar-se com a brisa de um
ventilador, são desconhecidos para eles. “Na verdade, a gente se
contentaria com muito menos, como ter condições de ligar uma bomba para
puxar água da cisterna para a plantação”, sonha Fortunato, cearense de
45 anos. Sem desfrutar de energia elétrica, a saída é fazer a irrigação
de forma manual, quebra-galho sem o mesmo resultado. É do plantio de
milho, feijão e fava, cultivo comum a todos os agricultores da região,
que sai o prato de cada dia.
Distância de Fortaleza a Serra da Estrela, em Saboeiro-CE: 450 km (Foto: Google Maps)
Qualquer
outro acompanhamento nem sempre disponível, como frango, peixe ou carne
vermelha, precisa ser todo consumido no mesmo dia, pois não há
geladeira. “Se a gente mata um carneiro, tem que chamar os vizinhos para
comer junto, senão estraga”, explica Fortunato. A solução, para alguns,
é salgar a carne e lavá-la antes do consumo. Isso não impede que o
cheiro forte nas casas atraia toda sorte de insetos.
A
família de Fortunato é uma das onze de Serra da Estrela, a cerca de 35
quilômetros da sede de Saboeiro. Para chegar à comunidade, é necessário
percorrer 10 quilômetros de estrada carroçável. Os seis últimos
quilômetros são uma subida íngreme, com acesso somente de moto. E, ainda
assim, se não estiver chovendo forte. “Nossa vida já foi muito pior.
Imagine quando não havia moto: subir com carga, só no lombo de jumento”,
descreve Fortunato.
“Beber água gelada é luxo. A gente se contentaria com muito menos”.
Fortunato da Silva, agricultor de Saboeiro.
Além
das motos, que se popularizaram na zona rural do Nordeste, outra
novidade amenizou o sofrimento na comunidade: o Bolsa Família,
instituído pelo governo Lula em 2003. Todas as famílias de Serra da
Estrela recebem o benefício. No caso de Fortunato, são R$ 352 mensais,
desde que mantenha na escola seus três filhos. Eles estudam no distrito
de Barrinha e caminham os seis quilômetros serra abaixo para chegar ao
colégio.
A
renda certa é questão de sobrevivência onde não há emprego além da
agricultura de subsistência. “Sem esse dinheiro, enfrentar as
dificuldades de se viver sem energia elétrica seria ainda mais difícil”,
expõe Fortunato. Outro programa federal, o Luz para Todos, nutriu a
esperança de que o benefício mais sonhado também chegaria a suas casas.
Mas, até aqui, tudo não passou de um desejo frustrado.
Ao
lado da casa de Fortunato da Silva, na Serra da Estrela, em Saboeiro,
passa uma linha de alta tensão que liga os municípios de Jucás e
Catarina (Foto: Rafael Luis Azevedo)
Parte
da política governamental de oferecer melhores condições de vida a
populações isoladas, o Luz para Todos levou torres de transmissão de
energia a rincões de norte a sul do país. Uma dessas linhas passa
literalmente sobre os moradores de Serra da Estrela. Instalada em 2006,
ela transporta energia entre os municípios de Jucás e Catarina. Porém,
não foi possível iluminar a comunidade de Saboeiro.
“A
energia passa em cima das nossas casas, mas não pode chegar às nossas
casas. Quando instalaram as torres, explicaram que a alta tensão impedia
que um ramal descesse para cá”, relata o agricultor Valdir de Oliveira,
de 48 anos. Por ironia, a luz passa tão perto e, ao mesmo tempo, está
tão longe. “Já pedimos muitas vezes energia para a Coelce [Companhia
Energética do Ceará], mas a desculpa é sempre a mesma.”
“Se
a gente mata um carneiro, tem que chamar os vizinhos para comer junto,
senão estraga”. Fortunato da Silva, agricultor de Saboeiro.
A
Coelce opera o Luz para Todos no estado e, no fim de 2013, tinha como
meta instalar energia elétrica em 30 pontos de Saboeiro durante 2014 –
até março, sete obras foram finalizadas. Porém, os moradores de Serra da
Estrela terão que usar por mais um tempo velas e lampiões a gás ou
querosene durante a noite, pois a companhia não sabe onde fica a
comunidade, nem tem registro de solicitação do serviço.
Desde
seu surgimento, o programa garantiu energia elétrica a 3,1 milhões de
famílias, num total de 15,1 milhões de pessoas, segundo o Ministério de
Minas e Energia. Passados 11 anos, contudo, o acesso ao serviço ainda
não foi universalizado. Até 2000, 10,8% da população do Ceará não tinha
eletricidade, aponta o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do
Ceará (Ipece). Hoje, o número está reduzido a menos de 80 mil pessoas,
que vivem em comunidades isoladas como as de Saboeiro.
SAIBA MAIS:
10
maiores proporções de famílias com energia elétrica no Ceará, em 2010:
Fortaleza (99,70%), Baixio (99,65%), São Benedito (99,63%), Brejo Santo
(99,55%), Groaíras (99,53%), Iguatu (99,53%), Guaraciaba do Norte
(99,53%), Jaguaribe (99,53%), Barreira (99,51%) e Horizonte (99,51%).
10
menores proporções de famílias com energia elétrica no Ceará, em 2010:
Choró (95,97%), Irauçuba (95,89%), Acaraú (95,75%), Itarema (95,59%),
Salitre (95,42%), Amontada (94,96%), Aiuaba (94,86%), Catarina (94%),
Granja (92,77%) e Saboeiro (91,10%). Fonte: IBGE/Ipece.
Na casa de quem não tem energia, a água é armazenada em potes (Foto: Rafael Luis Azevedo)
Poucos
municípios como esse sofrem tanto com o problema. Ao todo, existem lá
sete comunidades sem energia elétrica, incluindo ainda Passo Fundo,
Ninador, Queimadas, Logrador, Paraná e Serra do Papagaio. “Em pleno
século 21, isso não podia acontecer. Esse é um serviço básico para a
sobrevivência humana”, opina Francisco Bezerra, agente administrativo da
Secretaria de Agricultura de Saboeiro.
O
cenário já foi pior. Antes do surgimento do Luz para Todos, quase a
metade da população de Saboeiro não desfrutava de energia elétrica. Como
explica o gestor, cabe à prefeitura fazer o levantamento das
comunidades sem o serviço e encaminhá-lo à Coelce, que realiza um estudo
topográfico da região. Dependendo da verba fornecida pelo programa, a
solicitação é atendida de imediato ou futuramente.
“A energia passa em cima das nossas casas, mas não pode chegar às nossas casas”. Valdir de Oliveira, agricultor de Saboeiro.
“O
custo médio [para eletrificação] é relativo, pois deve-se, entre outras
questões, conhecer a distância física entre o solicitante e o sistema
elétrico da distribuidora”, pontua a assessoria de imprensa da Coelce.
“Não é uma obra barata, é fato. Mas é um custo que impede outros gastos
lá na frente. Afinal, como se combate o êxodo rural sem oferecer
condições dignas de vida no campo?”, questiona Bezerra.
Em
11 anos, já foram investidos R$ 16 bilhões no Luz para Todos. A meta do
governo federal é universalizar o fornecimento de energia elétrica no
Brasil. Para isso, após a conclusão da 3ª etapa do programa, em dezembro
deste ano, será feito um novo estudo para descobrir quem ainda ficou de
fora.
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